quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Ah, solidão...


Pegou a xícara transbordando café e sentou-se. Finalmente, encontrou-se sentado naquela poltrona aconchegante – nunca tinha notado o quão bom ela era, sentaria mais vezes ali. Gostava de toca-discos. Quero dizer, tinha um tocando nesse momento. A sala estava escura, era noite, só se ouvia o som do piano: era Erik Satie. A sua cabeça doía, isso sempre acontecia quando estava com problemas. Tomou mais um gole, o café estava quente demais, não devia ter deixado a água ferver tanto. Da janela aberta a sua frente, relâmpagos já indicavam a vinda da chuva. Decidiu tirar os sapatos, ficar mais a vontade. “Esse café está tão bom” pensava, o clima estava realmente dos bons, dos que ele gostava de estar. Só faltava uma coisa: seu cigarro. Está ali em cima da mesa da cozinha. Que preguiça – não pegou. Bom pra ele, bom pra saúde, bom pro pulmão. Ficou só com o café. Ah, sim, e com Satie.


A música parou e ele não se moveu esperando que ela voltasse, o silêncio prevaleceu e o clarão dos céus mais uma vez iluminou a sala. Dessa vez deu pra ver quase toda sua sala em alguns instantes, viu toca-discos, algumas almofadas pelo chão e escuridão. Tomou mais um gole de café, fechou os olhos e passou a sentir as notas musicais. A música voltou. Uma lágrima escorreu em seu rosto e ele não sabia por quê. Na verdade sabia, mas não queria admitir, não queria que seu próprio Eu assumisse certas vontades. Não queria dizer que estava só. Tomou mais um gole de seu café, que agora estava no fim. Não queria dizer, que por mais que fosse indiferente com crianças, queria ter uma para si, queria ser pai. E já tinha quase quarenta anos. E já tinha quase tanto. Ainda era tempo, convenhamos, mas ele não se conformava com aquilo. Quando lhe perguntavam sobre família, filhos, ele dizia sempre a mesma mentira: era feliz sozinho, não gostava de bagunça, gosta das coisas de seu jeito e que não conseguiria viver tendo que cuidar de outro ser. Mas não só queria cuidar de outro ser, como também queria ter outro ser, ensinar outro ser, ser outro ser. Queria. Outro relâmpago, outra música, e agora queria, outro café. Aquele de antes acabara. Uma desculpa para se levantar, pegaria o café e pegaria o cigarro. Começou a chuva. Parou um instante na porta da cozinha, não queria estragar o momento, não acenderia as luzes, apenas o cigarro. Conseguiu pegar o bule e serviu-se de café, agora em uma xícara maior. Pigarreou. “Se tivesse um filho, o que estaria fazendo uma hora dessas?” se perguntou. Eram onze da noite. Provavelmente estaria dormindo, já que seu filho teria de dormir cedo. Não poderia ter momentos como aquele, ouvir sua música, fumar seu cigarro. “Ah, besteira. É melhor viver sozinho.”. Dizia isso para conformar a si mesmo, porque no fundo ele mesmo sabia a sua verdadeira vontade. Sentou-se novamente, tomando seu café, fumando seu cigarro. Gostava dessa mistura. 
Ficou pensando em seus amigos, no quão felizes eles estavam com suas famílias. E ele ali, sozinho, sem ninguém pra lhe cuidar quando adoecia, sem ninguém que ele pudesse cuidar. Enquanto mais uma música acabava ele pensava no seu passado. "Eu podia estar muito bem hoje, se não tivesse deixado muitas coisas para trás.". O arrependimento vem com o passar do tempo, das coisas e dos pensamentos. E aquele arrependimento era puro, era verdadeiro. Queria não ter abandonado a mulher da sua vida, por pura tolice adolescente. Queria também, ter dado a devida atenção a sua família que hoje nem ele sabia onde se encontrava. Só sabia que estava só e que tinha um primo, que morava mais a Norte da cidade e eles raramente se falavam. Então, estava solo  mais um vez. Ele podia sair por ai, arranjar uma namorada e viver feliz para sempre. Podia, mas não era tão simples assim. Lhe faltava coragem, lhe faltava até uma certa vontade de aparecer em público assim, em público festeiro, quero dizer - preguiça. A vida prega muitas peças na gente - ele pensava - Olha só pra mim: um quase quarentão, sozinho pelo mundo, vivendo das ideias mirabolantes para propagandas e que antes era um adolescente feliz, com uma família e uma namorada maravilhosas, com amigos... Não que hoje não tivesse amigos, tinha-os. Mas passaram de amigos para simples conhecidos. Não tinha ninguém que lhe convidasse para viajar, sair, almoçar fora, jantar, passear... essas coisas que amigos fazem.
O choro lhe veio, mas dessa vez descontroladamente. Deixou-se chorar por longas horas, até a música já tinha acabado e lá estava ele. Talvez não tivesse sido um bom homem na vida passada - bobagem, ele não acreditava nessas coisas. Levantou-se, acendeu outro cigarro e pôs-se a fumar, quem sabe o cigarro não o mataria mais rapidamente do que essa dor que agora ele sentia. Essa dor da vida que de repente começava a corroer-lhe os ossos. A dor da solidão, do arrependimento. O café do bule já tinha esfriado, o tempo também. Resolveu deitar-se, amanhã o dia era longo e teria de estar cedo no escritório. Adormeceu.


No outro dia acordou, parecia renovado. Aquelas horas de sono, horas essas que há tempos não tinha, o deixaram de bem consigo mesmo. Fez mais um café, fumou dois cigarros, arrumou a cama. Antes de sair, verificou se não tinha esquecido nada: carteira, chave do carro, alguma coisa ligada, pasta, cigarros? Ah não, tinha-os perdido. Começou a apalpar os bolsos até que encontrou um maço de cigarro. Sorriu e saiu. Parecia ter esquecido das horas dolorosas da noite anterior. Parecia, mas ainda lembrava de cada detalhe. Apenas continuou sua vida, nada iria mudar se ele não mudasse, então com a preguiça de sempre, resolveu não mudar. Resolveu deixar tudo como estava. Afinal, mudar lhe daria dor de cabeça, como todas as mudanças em sua vida.